Portaria da AGU sobre Terras Indígenas passa por cima do STF


ISA, Oswaldo Braga de Souza

Norma pretende orientar órgãos federais com base em questão ainda não resolvida pela Suprema Corte. Ela dispensa consulta prévia para a implantação de obras consideradas “estratégicas” pelo governo em Terras Indígenas e deve impedir a ampliação de áreas hoje insuficientes para garantir a sobrevivência de várias comunidades

Saiu ontem no Diário Oficial uma portaria da AGU (Advocacia-geral da União) que torna regra para os órgãos da administração federal as condicionantes incluídas pelo ministro Menezes de Direito na decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre o caso da TI (Terra Indígena) Raposa-Serra do Sol (RR), em 2009 (leia a portaria).
Em seu voto, Direito estabeleceu uma série de condições para que a demarcação em área contínua fosse considerada legal. Várias delas restringem o direito dos índios sobre suas terras sob a justificativa de garantir a “segurança nacional” (saiba mais).

O problema é que a Suprema Corte nunca definiu que essas condicionantes deveriam ser consideradas regras de aplicação geral e não tem uma decisão final sobre o assunto. O STF ainda precisa se manifestar sobre pedidos de esclarecimento feitos após o julgamento de 2009.

Recentemente, em uma ação de fazendeiros contra uma demarcação no Maranhão, o ministro Ricardo Lewandowski reiterou que as condicionantes não têm força de súmula, ou seja, não se aplicam automaticamente a outros casos.

Consulta

A portaria da AGU coloca em xeque a consulta prévia às comunidades indígenas sobre empreendimentos que as afetem. Determina que a implantação de hidrelétricas e estradas poderá ser feita independente de consulta a essas populações quando essas obras forem consideradas “estratégicas” pelo Ministério da Defesa e o Conselho de Defesa Nacional. O mesmo se aplica à instalação de unidades militares.

Não existe até o momento nenhuma legislação que dê ao conselho a competência de classificar obras como estratégicas.

A Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), assinada pelo Brasil, determina a realização de consulta prévia, livre e informada às populações indígenas sobre qualquer empreendimento que as afetem.

A Declaração da ONU (Organização das Nações Unidas) para os Povos Indígenas, também ratificada pelo País, determina que a construção de bases militares no interior de TIs deve ocorrer apenas em casos excepcionais, devidamente justificados e sempre mediante consulta aos grupos atingidos.

Já a Constituição Federal diz que a exploração dos recursos hídricos em TIs só pode ocorrer com autorização do Congresso, ouvidas as populações afetadas.
“O que assusta na portaria é seu autoritarismo. A AGU está se antecipando ao STF e adotando uma interpretação reacionária das condicionantes”, critica Raul do Valle, coordenador adjunto de Política e Direito Socioambiental do ISA.

Para ele, a portaria é um retrocesso no posicionamento da União em relação aos direitos indígenas.

“A medida retoma um linguajar e uma racionalidade que imaginávamos superados desde o fim do regime militar. Implicitamente, coloca os índios na condição de ameaça à soberania nacional, submetendo aspectos fundamentais de sua vida a uma decisão do Conselho de Defesa Nacional, sem que tenham sequer o direito de opinar sobre o destino de suas terras”, afirma Valle.

“Tudo isso fundamentado num nebuloso conceito de segurança nacional, o mesmo que foi utilizado para perseguir os dissidentes da ditadura”, analisa.

Órgãos como Funai (Fundação Nacional do Índio) e ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) terão de seguir a nova orientação.

Ampliações

Na prática, a portaria também deverá paralisar a ampliação de TIs. Segundo a norma, as ampliações passam a ser exceções: só poderão ocorrer quando forem constatados no processo de demarcação erros jurídicos graves. A alternativa seria anular um processo já finalizado e reiniciá-lo, incluindo a demanda pela ampliação.

São muitas as TIs demarcadas, sobretudo no centro-sul do país, que demandam revisão de limites por não corresponder a toda a área de ocupação tradicional e não ter o tamanho suficiente para garantir a sobrevivência das comunidades indígenas.

No início de 2011, havia cerca de 80 pedidos de ampliação de TIs e 54 casos de revisão de limites em andamento no País.

A falta de terra é responsável por conflitos e altos índices de desnutrição, mortalidade infantil, suicídio, alcoolismo, criminalidade e doenças decorrentes da mudança do modo de vida tradicional. O caso mais emblemático é o dos Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul (saiba mais).

A portaria vem na esteira de outros retrocessos na agenda ambiental do governo: diminuição drástica do ritmo de criação de novas áreas protegidas (veja aqui), redução de UCs na Amazônia para viabilizar hidrelétricas (leia mais) e alterações nas regras do licenciamento ambiental (saiba mais).

Sobreposições

A medida pode reacender ainda conflitos entre comunidades indígenas e órgãos de gestão das UCs.
Após anos de divergências com essas populações, recentemente o ICMBio, responsável pelas UCs federais, começou a implementar práticas que reconhecem a necessidade de planejamento participativo no caso de TIs e UCs sobrepostas.

A portaria da AGU, no entanto, determina que essas áreas devem ser administradas pelo ICMBio, sendo que as comunidades indígenas devem ser apenas “ouvidas”.

A própria PNGATI (Política Nacional de Gestão Ambiental em Terras Indígenas), recentemente assinada pela presidenta Dilma Rousseff, afirma que, no caso de sobreposição, deve haver “planos conjuntos de administração das áreas de sobreposição”, a serem executados com a participação dos índios. A política é fruto de um longo processo de consulta aos povos indígenas do País.

Existem hoje no Brasil 61 casos de sobreposição entre UCs e TIs, somando cerca de 7,8 milhões de hectares sobrepostos. Há 23 casos em que mais de metade da TI está sobreposta.

“A portaria atropela boas práticas administrativas que estão sendo construídas a duras penas e que têm como princípio o respeito à opinião e aos interesses dos povos e comunidades indígenas. Adota como regra, como exemplo, as más práticas, que subjugam os interesses dos índios em nome de um suposto interesse do Estado”, afirma Raul do Valle.

A posição adotada agora pela AGU contraria documento do próprio órgão de três anos atrás. Em 2009, em memorial apresentado ao STF para consolidar a interpretação das condicionantes sobre a Raposa-Serra do Sol, o então advogado geral da União e atual ministro do STF José Antônio Toffoli afirmou que, no caso de instalações militares e da sobreposição com Unidades de Conservação (UCs), a consulta aos povos indígenas é fundamental e não há na legislação nacional nada que a dispense.

"Por força das disposições constitucionais e legais, não há como se falar em impossibilidade de se ampliar uma terra indígena já demarcada", afirma o memorial.

A assessoria da AGU não respondeu ao pedido de entrevista com o ministro Luís Inácio Adams até o fechamento desta reportagem.

ISA, Oswaldo Braga de Souza

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