Hidrelétrica São Manoel: Cronologia de mais um desastre – Parte II

Região, no rio Teles Pires, escolhida para construir a UHE São Manoel Foto: (Marcelino & Gallo, 2009)
por Telma Monteiro

Nesta segunda parte do imbróglio do processo de licenciamento da UHE São Manoel ficam patentes as artimanhas, o cinismo e o desespero da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) para viabilizar o projeto em tempo para o leilão de energia de dezembro de 2011. Como a EPE tenta manipular informações para evitar aprofundar os estudos ambientais. Os técnicos do Ibama e da Funai continuaram apontando as inconsistências  e pedindo complementações. O Ministério Público empreende sua via crucis junto ao judiciário, para evitar o desastre.

As falhas gritantes nos estudos ambientais e no Estudo do Componente Indígena (ECI) se acumulam e já seriam mais que suficientes para ter justificado a anulação do EIA/RIMA e do processo de licenciamento da UHE São Manoel.  É de estarrecer, também, a afirmação da EPE de que os projetos hidrelétricos no PAC 2 somam 80% com algum grau de interferência com Terra Indígena.


EPE em desespero

No início de 2010, a EPE enviou ao Ibama o EIA/RIMA desenvolvido em 2009, mas sem os Estudos Socioambientais do Componente Indígena (ECI). Em março o Ibama expediu um ofício – 263/2010 – informando a recusa de análise do EIA, pois sem o ECI ele estava incompleto. Esse ofício, assinado pelo então Diretor de Licenciamento Ambiental, Pedro Alberto Bignelli, comunicava também que a solicitação de Licença Prévia estaria desconsiderada e, apenas com o estudo entregue em sua totalidade, deveria ser reapresentada ao Ibama.

Em abril, o diretor de Estudos Econômico-Energéticos e Ambientais da EPE, Amílcar Guerreiro, em resposta ao Ibama traduziu seu desapontamento diante da decisão. Afinal, o leilão da UHE São Manuel previsto  para acontecer em 2010 seria prejudicado. Inconformado, Amílcar Guerreiro, informou que as complementações pedidas pela Funai estariam concluídas em junho e que, diante disso, não cabia o entendimento de que o EIA da UHE São Manoel estivesse incompleto.

A Funai recusa as complementações

As complementações do ECI foram encaminhadas pela EPE em 17 de agosto de 2010.  A Funai, no entanto, expediu um ofício em 25 de agosto, informando à EPE que após uma checagem do ECI constatou que ele não possuía elementos suficientes para análise técnica e que estava em desacordo com o Termo de Referência.

Seguiu-se uma extensa lista entre quesitos insuficientes e não atendidos. Foram ao todo 30 itens.  Para finalizar, a Funai pede ainda a reinterpretação da análise de viabilidade dos documentos, pois na conclusão do EIA/RIMA não foram considerados os impactos sobre os povos indígenas.

O Ibama rejeita o EIA e o MPF se manifesta

Ainda em agosto de 2010, o Procurador da República do Ministério Público Federal de Mato Grosso, Mario Lúcio Avelar, oficializa o Ibama, reiterando o pedido de informações sobre o processo de licenciamento de todos os empreendimentos hidrelétricos na bacia do rio Teles Pires.

Trabalhos de sondagem no local escolhido para construir a UHE São Manoel
Foto: Murici Kayabi
Dando continuidade ao processo de licenciamento, o Ibama fez a checagem do atendimento do TR do EIA/RIMA da UHE São Manoel. Emitiu parecer técnico em 14 de setembro de 2010, em que apontou 33 pendências, entre elas das complementações do ECI já mencionadas pela Funai. O EIA/RIMA foi rejeitado pela equipe técnica do Ibama, uma vez que ele não atendia ao TR.

A Funai endurece

A principal pendência do EIA/RIMA continuou sendo as complementações dos Estudos do Componente Indígena (ECI) e isso se confirmaria meses depois, já em janeiro de 2011. Um ofício da Funai para a EPE informava que para o prosseguimento de qualquer atividade no processo, antes da emissão da LP, era preciso reformular os Estudos do Componente Indígena em onze itens específicos. Até então, esses estudos se referiam à UHE São Manoel e à UHE Foz do Apiacás – Terras Indígenas Kayabi, Mundurucu e Pontal dos Apiacá.

O estudo só seria aprovado depois de reformulado e após a realização de reuniões em terras indígenas "com linguagem e metodologia adequadas" previamente submetidas à Funai. Mais ainda, a fundação destacou que só depois do cumprimento integral das condicionantes do componente indígena da UHE Teles Pires, teria condições de avaliar os processos de licenciamento dos empreendimentos a jusante. Portanto, ficava aí estabelecida, pelo menos para a Funai, a relação entre o processo da UHE Teles Pires, já adiantado, e os demais processos da UHE São Manoel e da UHE Foz do Apiacás.


O cinismo da EPE

Em 21 fevereiro de 2011, Amílcar Guerreiro, diretor da EPE, enviou um ofício a Aluísio Atonio C. Guapindaia, diretor da Funai, onde manifesta sua preocupação com o rumo que o processo está tomando. Ele se reporta a outro ofício da Funai de que teve conhecimento, mas que não foi protocolado na EPE e que, segundo ele, punha em risco o desenvolvimento do potencial hidrelétrico brasileiro, em especial de projetos na região Amazônica.

Numa apologia à importância da energia elétrica nas sociedades modernas, Amílcar Guerreiro profetizou que, diante da postura da fundação, os brasileiros estariam condenados a sofrer os males provocados pela construção de projetos termelétricos em larga escala. O potencial hidrelétrico é patrimônio da União, apregoou ele, segundo a Constituição Federal.

Não poderia deixar de mencionar a urgência do PAC. Então, acaba entregando um dado estarrecedor ao mencionar que, de 48 projetos hidrelétricos, 18 atingem áreas de Terras Indígenas. Vai mais longe ao afirmar que 16 projetos, embora não estejam diretamente em TIs, estão a menos de 50 quilômetros delas, como a UHE São Manoel e a UHE Foz do Apiacás. Ainda confirma  que os projetos hidrelétricos no PAC 2 somam 80% com algum grau de interferência com TI.

Amílcar Guerreiro se mostra inconformado com a decisão da Funai de condicionar a análise dos ECI de São Manoel e Foz do Apiacás ao cumprimento das condicionantes da UHE Teles Pires. Usando um tom jocoso afirma que as usinas São Manoel e Foz do Apiacás "não atingem um hectare de TI demarcada, nem sequer de áreas pretendidas para ampliação da TI demarcada. A propósito [cinismo], o ECI revelou que a demarcação das terras é uma genuína preocupação das comunidades indígenas que parece ser muito maior do que a implantação das usinas. Se nesses casos a Funai se posiciona da forma como fez no (ofício), o que esperar com relação ao licenciamento dos projetos que atingem diretamente território indígena?"

O diretor da EPE anexou uma tabela (ver abaixo) das UHEs previstas no PAC 2 e as distâncias das TIs. São Manoel está a 700 m e Foz do Apiacás a 230 m da TI Kayabi.

A  EPE protocolou a reformulação do ECI na Funai em 27 de julho de 2011. A partir daí a Funai comunicou que passou a considerar o estudo apenas para a UHE São Manoel e não mais para a UHE Foz do Apiacás.
  


Em outro anexo chamado de "Considerações Gerais" sobre o ofício da Funai,  a EPE repudia o que chama de precedente e despropositada vinculação de projetos hidrelétricos de diferentes agentes e em diferentes etapas de licenciamento. Não há embasamento legal nessa colocação, mesmo que a Funai, como mencionado no item II, não tenha emitido um TR para o ECI da UHE Teles Pires.

Quanto aos índios isolados, objeto do item III desse mesmo anexo, a EPE atribui à Funai a culpa por não ter conseguido cumprir a exigência de elaborar o estudo relacionado aos índios isolados.

O Ibama também rejeita o RIMA

Em parecer técnico datado de 1° de abril de 2011, os analistas do Ibama rejeitam,  também,  RIMA da UHE São Manoel. A conclusão aponta inconsistências textuais e  recomenda a devolução do RIMA para as devidas correções. Faltam justificativas sobre a alternativa estudada, faltam fundamentos que façam o leitor, leigo no assunto, entender a decisão de construir a hidrelétrica e faltam explicações sobre a interação da UHE São Manoel com a UHE Teles Pires, rio acima.

Em 22 de julho de 2011, a EPE encaminha novamente o RIMA com as devidas correções para análise dos técnicos que se dão por satisfeitos e o aprovam em parecer de 27 de julho.
Neste momento, cabe perguntar o porquê de,  diante de tantos problemas detectados nos estudos, o projeto estar liberado para ir a leilão.

O Ministério Público de MT se manifesta

Em ofício ao Ibama, de 25 de julho de 2011, o Promotor de Justiça de MT, Marcelo Caetano Vacchiano, comunicou a instauração do Inquérito Civil (IC) 068/2011 para acompanhar o licenciamento ambiental da UHE São Manoel e requisita cópia integral do processo e informação sobre alterações no projeto.

Em 29 de agosto, novamente o MP de Mato Grosso se pronuncia, ainda dentro do IC, no sentido de solicitar a realização de audiências públicas nos municípios que sofrerão influência da UHE São Manoel – Alta Floresta, Paranaíta e Jacareacanga.

Ibama aceita o EIA/RIMA e marca audiências públicas

Depois de aceito o EIA/RIMA, o Ibama, dando continuidade ao processo de licenciamento ambiental da UHE São Manoel, marca as audiências públicas em Paranaíta (MT), Alta Floresta (MT) e Jacareacanga (PA) para os dias 22, 23 e 25 de outubro de 2011, respectivamente.

Em 07 de outubro de 2011, um ofício do Ibama, assinado pelo então presidente Curt Trennepohl,  ao Palácio do Planalto, Ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, José Elito C. Siqueira, em um procedimento inédito, solicita segurança nas Audiências Públicas.  A alegação é a forte resistência apresentada pelos Munduruku ao projeto da UHE São Manoel. Uma das competências do Gabinete de Segurança é o de coordenar atividades de inteligência federal e de segurança da informação.

Mas, em nota técnica de 19 de outubro de 2011,  o Ibama concluiu que o tema "sinergias e cumulatividades entre os impactos da UHE São Manoel e da UHE Teles Pires" não está satisfatoriamente contemplado no âmbito do EIA e necessita mais complementações. Os técnicos pedem que o empreendedor complemente as lacunas apontadas na análise e as informações sobre os Efeitos Cumulativos e Sinérgicos dos Impactos da UHE São Manoel.

As audiências públicas seriam suspensas em 21 de outubro de 2011, em decisão proferida pelo Juiz Federal Paulo Cezar Alves Sodré, da Subseção Judiciária de Sinop, MP, atendendo um pedido do MPF e do MP de MT. Para desespero ainda maior da EPE, a suspensão das APs da UHE São Manoel, por decisão liminar, inviabilizaria a habilitação do projeto para o leilão de energia marcado para 20 de dezembro de 2011. 

Em 7 de novembro de 2011, o Desembargador Federal, Olindo Menezes, derruba a liminar de suspensão das Audiências Públicas. Diante da reviravolta a EPE tenta de urgência confirmar com o Ibama agendar novas datas para a realização das APs, ainda em novembro, para viabilizar o leilão da UHE São Manoel. 


Continuo e finalizo este relato na Parte III, em que vou mostrar como a EPE "joga sujo". Primeiro exigiu alteração e depois desqualificou autor e relatório antropológico complementar requerido pela Funai e que foi contratado pela própria EPE. O relatório avaliou as implicações da UHE São Manoel nas comunidades indígenas, em especial na Terra Indígena Kayabi. 

Este artigo teve como base os documentos do processo de licenciamento da UHE São Manoel que tramita no Ibama.

Comentários

  1. É inaceitável a forma de como o governo vem degradando o meio ambiente. O governo tem estado constantemente ameaçando o nosso ecossistema, tirando proveito das únicas vias naturais preservadas. Deixo aqui o meu protesto da minha indignação!!! bjs mil

    ResponderExcluir
  2. De um lado os interesses desenvolvimentistas do país, de outro a sacralização das terras indígenas. Há também o boicote político-ideológico a qualquer empreendimento capitalista promovido pelo movimento ambientalista, que se diz preocupado com o meio ambiente, só que não.
    Por outro lado, não há ninguém que defenda a preservação das belezas naturais (cachoeiras, corredeiras, paisagens), como se, nessa visão cientificista e materialista do mundo, as belezas naturais fossem algo fútil e descartável.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O Cordel da Energia