Usinas do Madeira: histórias de exploração sexual e caos no serviço público

Matéria revela a verdadeira face da construção de hidrelétricas na Amazônia. A falta de estudo dos impactos sociais do projeto do Complexo Madeira transformou a vida em Rondônia num inferno. É uma vitrina daquilo que poderá acontecer na região do Xingu, com Belo Monte. Vale a leitura para reflexão. (TM)

Faixa estendida na entrada de Jaci-Paraná


Moradores das áreas alagadas ainda lutam por justiça


A região do Rio Madeira, em Rondônia, ao Norte do Brasil, se transformou em um imenso canteiro de obras, com o início da construção das usinas de Jirau e Santo Antônio. Juntas, elas empregam cerca de 40 mil trabalhadores, muitos deles vindos de outros estados, principalmente Maranhão, Piauí e Mato Grosso.

Os projetos pensados para ampliar a geração e distribuição de energia no país deveriam melhorar a qualidade de vida dos operários e da população, além de proporcionar avanços por onde passam. Porém, sem ter como critério fundamental o impacto social que causam, os empreendimentos provocam sérios problemas à comunidade.

O vilarejo de Jaci-Paraná, a cerca de 130 km da capital Porto Velho, é exemplo muito claro disso. Localizada ao lado Jirau, a população viu o número de habitantes crescer de 4 mil para 16 mil pessoas, desde a instalação da hidrelétrica, em 2008. Junto, também surgiram problemas típicos das grandes metrópoles, como a piora na saúde e segurança. “Não há médico e nem remédios no posto de saúde. Há cinco dias aconteceu um acidente aqui e a pessoa ficou estirada no chão por mais de uma hora esperando a ambulância vir de outro lugar”, diz Wilson Passos, dono de um pequeno comércio local.

O mineiro que mora em Rondônia desde o início da década de 1980, mudou para Jaci atraído pelo movimento de operários, mas agora precisa dormir no estabelecimento para evitar roubos como o que aconteceu no dia 1º. de janeiro deste ano e causou um prejuízo de R$ 25 mil em mercadorias.

Saneamento básico também se tornou artigo de luxo. “Tive que pagar R$ 1800 para furar um poço e ter água, porque a prefeitura dizia não ter capacidade para oferecer”, conta Sueli Valeriano, dona de um salão de beleza.

Lazer na estrada

Com Jirau, chegaram também os barracos de madeira à beira da BR-364, na entrada de Jaci, que servem como pontos para garotas de programa. Atualmente, com as obras suspensas, o movimento é menor, mas em dias de pleno funcionamento dos canteiros o lugar ferve.

A cabeleireira Eliane Fernandes, funcionária de Sueli, comenta que muitas das garotas frequentam o salão e denuncia a presença até de menores de idade. “Aqui não tem fiscalização”, aponta.

Segundo ela, uma parte já retornou às cidades de origem, mas outras alugaram casas na região para aguardar a volta dos trabalhadores. Enquanto eles não retornam, tentam conseguir algum dinheiro nos bares.

É o caso da morena de corpo franzino que se identifica como Joicelene. Ela chegou há três meses ao distrito por conta das usinas e não titubeia em responder quando questionada sobre o que mudou com a vinda das barragens. “O que mais aumentou foram os cabarés”, avalia a garota, que diz cobrar R$ 80 por programa.

Parte do dinheiro que consegue, conta, é enviado à cidade de origem, Pedro Juan Cabellero, no Paraguai. O valor serve para sustentar as filhas gêmeas, para reformar a casa do pai e construir uma outra onde pretende morar. Sobre o futuro, é enfática: “enquanto tiver usina estou ai.”

Movimentos sociais foram às ruas no último dia 5
cobrar responsabilidade das usinas

Exploração e indenização

Como é possível perceber, a construção de hidrelétricas não é apenas um grande negócio para as empreiteiras. Uma estrada de terra batida que sai da BR e avança rumo ao Rio Madeira leva a um conjunto de bares onde várias garotas ofereciam, até o início da semana retrasada, seus serviços aos operários. Em um dos lugares há quiosques e até uma piscina. Com o complexo hidrelétrico, além dos prostíbulos, as vias também viram surgir o tráfico de drogas.

Um homem identificado como “Gaúcho” seria o responsável pela construção do comércio. E não apenas em Jirau. “Ele segue grandes obras e na maioria das vezes acompanha a Camargo (Camargo Correa, empreiteira responsável por Jirau). Agora foi para Belo Monte”, diz o pedreiro Adailton*, que afirma já ter encontrado com ele em outros canteiros, quando trabalhou na construção de uma barragem e de uma refinaria em Santa Catarina.

O empreendedor, contudo, não se restringiria à exploração da prostituição. “Ele vai, vê os terrenos próximos que vão ser atingidos e compra. Ainda por cima ganha indenização. O homem recebe até por um pé de árvore que planta, só anda em carro de luxo”, comenta.

Expulsos da terra

O processo de reassentamento da população atingida pelas obras de Jirau ajuda a entender o inchaço de Jaci-Paraná. Na época da desapropriação das terras de Mutum, vilarejo que será inundado pela barragem de Jirau, os moradores puderam optar por ter uma casa em Nova Mutum, distrito planejado e construído pelo consórcio Enersus (Energia Sustentável do Brasil), ou receber uma indenização.

Quem escolheu o dinheiro não conseguiu valor suficiente para comprar uma casa em Porto Velho e precisou ficar em Jaci.

Alguns, porém, não puderam usufruir nem de uma coisa, nem outra, como é o caso de José da Silva Filho. Há cinco anos, o homem que deixou o Maranhão em busca de uma vida melhor, trabalhava como açougueiro em um mercado na antiga Mutum. O estabelecimento se foi para a nova versão do lugar, mas o trabalhador permaneceu. Ao lado da mulher e do filho pequeno, é um dos últimos a viver em um local que mais parece uma cidade fantasma, com ruas tomadas pelos escombros das casas derrubas e por dezenas de gatos e cachorros que não puderam ser levados pelos donos.
José Filho resiste com a família em busca de dignidade
José Filho resiste com a família em busca de dignidade


O motivo da resistência é a indenização de apenas R$ 32 mil que a empresa se propõe a pagar. “Isso não dá para comprar casa em lugar nenhum. Pedi para me darem uma casa na Nova Mutum para eu poder trabalhar, porque o mercadinho foi para lá, mas eles não quiseram. Tentei negociar e disse para me cederem um terreno, que eu mesmo construiria por conta, mas  também disseram não. Falaram para eu procurar a Justiça”, comenta ele, que possui todos os documentos provando a posse da casa.

A tática da empresa contratada pela Enersus agora é fazer pressão psicológica. “O Oficial de Justiça disse que vai vir segunda-feira (11), junto com o perito, e nos tirar na hora. Falou que é para nós sairmos e evitarmos constrangimento.”

A situação não é muito diferente para João Matias da Costa. Após pagarem pela casa onde morava, a família teve de ir embora, Apenas ele ficou, porque teme não ver o valor que o consórcio deve por sua mercearia. “O meu era um dos primeiros pontos para indenizarem, mas não recebi nada. Levei o documento para eles, mas dizem desconhecer o caso.”

O tamanho do estrago

Para o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), é preciso discutir um novo modelo de reassentamento, em que as pessoas tenham condições dignas para viver e possam ter estrutura para continuar produzindo, de acordo com seus conhecimentos. Ao contrário do que acontece com Costa, que ficará sem o comércio, não será ressarcido pela renda que perderá com o fechamento forçado do estabelecimento e ainda encontra dificuldades para receber ao menos pelo valor do terreno.

“Não somos contra gerar energia, mas sim contra a forma que se produz. A construção de Jirau e de Santo Antônio não foi discutida com a sociedade e sim imposta de forma truculenta. Não podemos esquecer que essas obras contam com financiamento público”, ressalta Océlio Muniz, membro da coordenação estadual do MAB em Rondônia.

Um levantamento do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) aponta que dos R$ 8,7 bilhões previstos para a construção de Jirau, R$ 7,2 bilhões – 63% do custo total – vieram do BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social). Já em Santo Antônio, o custo foi de R$ 9,5 bi, sendo R$ 6,1 provenientes de recursos públicos. Na primeira, a sócia majoritária do consórcio é a multinacional francesa Suez e, na segunda, a Odebrecht.

Placa atesta o fim da antiga Mutum
Após arrancarem um acordo emergencial para melhorar a condição dos trabalhadores de Jirau e Santo Antônio, CUT, Conticom (Confederação Nacional dos Sindicatos dos Trabalhadores da Construção Civil e da Madeira) e Sticcero (Sindicato dos Trabalhadores da Indústria da Construção Civil de Rondônia) lutam pela construção de um pacto nacional da construção civil, que defina contrapartidas sociais a serem cumpridas pelas empresas que tocam obras de grande porte, e pelo poder público. 

“O primeiro passo é estabelecer um canal de diálogo com a população e com os trabalhadores nos canteiros, já que isso não existe hoje, assim como não há opções adequadas de lazer e saúde para os operários. Construções como essas também exigem planejamento e investimento nos serviços públicos para adequar a segurança, a educação, a habitação, o transporte à quantidade de pessoas que chegam”, lembra Vagner Freitas, secretário de Administração e Finanças da CUT e dirigente destacado pela Central para mediar os conflitos na região.

Segundo o dirigente, as entidades cutistas defendem ainda que as hidrelétricas ajudem a financiar o desenvolvimento local. “Tão importante quanto investir na estruturação da região durante a construção das barragens é fazer com que os recursos gerados após a implementação financiem, prioritariamente, saúde e educação para que aas pessoas sejam realmente beneficiadas pelas transformaçoes que enfrentam”, acrescenta.

É o que espera o comerciante de Jaci, Wilson Passos, que deixa no ar uma pergunta muito ouvida nas ruas de Rondônia nos últimos dias: “o que vai acontecer quando terminarem as usinas e o pessoal for embora?” Fonte: CUT -  Fotos: Luiz Carvalho

* O nome foi trocado para preservar a identidade do trabalhador

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