Daniele
Bragança
22 de Janeiro de 2013
O
setor de energia ganhou as primeiras páginas dos jornais no início de 2013 com
o baixo nível dos reservatórios e a possibilidade de manter as termelétricas
ligadas ao longo de todo o ano para compensar a falta de chuvas. Célio Bermann,
professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP, é um crítico severo
dessa solução. Um dos mais respeitados especialistas na área energética do
país, trabalhou como assessor da então Ministra Dilma Rousseff no Ministério de
Minas e Energia, entre 2003 e 2004. “Saí quando verifiquei que o Ministério de
Minas e Energia estava fazendo o contrário do que eu pensava que seria
possível", diz ele. Severo crítico da hidrelétrica de Belo Monte, fez
parte do painel de especialistas que concluíram que o projeto da
usina não deveria ter seguimento.
Bermann conversou com ((o))eco sobre os caminhos do setor energético
e possíveis soluções para evitar o uso intensivo das termoelétricas como
complementação das hidrelétricas.
((o))eco: O Ministério de Minas e
Energia estuda usar as termelétricas de forma permanente, para poupar os
reservatórios. O que o senhor acha disso?
Utilizar termelétricas para complementar o sistema hidrelétrico é uma solução
equivocada. Em primeiro lugar, estamos falando de um sistema elétrico que
prioriza a geração de energia a partir da água, o que o torna dependente do
regime hidrológico. É preciso com urgência diversificar a matriz de
eletricidade do Brasil, utilizando fontes que, ao mesmo tempo, possam
complementar o regime da falta de água e que sejam viáveis do ponto de vista
econômico e ambiental.
((o))eco: Por quê?
Primeiro, porque a termoeletricidade pode custar 4 vezes mais do que a
hidroeletricidade. Além disso, utiliza três fontes fósseis derivados de
petróleo: óleo combustível, carvão mineral e gás natural. O principal problema
na utilização das fontes fósseis, ao meu entender, não são as emissões de gases
de efeito estufa. No caso brasileiro, o problema maior das termoelétricas é
serem emissoras de hidrocarbonetos, de dióxido de nitrogênio, de dióxido de
enxofre, de material particulado e de fumaça.
((o))eco: Quais são as
consequências?
O impacto ambiental dessas fontes é sobre a saúde pública. A vizinhança dessas
usinas fica suscetível a doenças crônicas causadas por esse coquetel de
poluição.
((o))eco: Há termelétricas que
utilizam água na sua refrigeração. Isso causa impactos negativos?
Em geral, essas usinas utilizam água dos rios próximos. Existem regiões no
Brasil em que o comprometimento hídrico impede a construção de termelétricas.
No estado de São Paulo, no rio Piracicaba, por exemplo, não foi possível construir
usinas a gás natural porque elas demandavam um volume de água além das
possibilidades da bacia deste rio.
((o)) eco: Qual é o custo das
termelétricas?
A
energia das termelétricas pode custar até 4 vezes mais do que a
hidroeletricidade. Ao mesmo tempo, com a Medida Provisória 579, o governo quer
reduzir a tarifa de energia usando recursos do Tesouro Nacional. É um absurdo,
pois esta medida afeta indiretamente o bolso dos consumidores. Somos nós que
vamos pagar por essa redução da tarifa. É uma forma fictícia de fazer algo
desejável: reduzir a tarifa. Temos uma das tarifas de energia elétrica mais
cara do mundo, algo absurdo porque nossa matriz com ênfase em hidrelétricas
produz energia que deveria ser barata.
((o))eco: E quais seriam essas
alternativas?
São três: a conservação da energia, o uso da biomassa e da energia eólica. A
primeira alternativa é pensar na conservação e no uso eficiente da energia. É preciso
uma ampla campanha nas mídias para ensinar à população a reduzir o desperdício.
O governo está fazendo o contrário, quando diz que não há risco de
racionamento.
Quando o governo prefere a termoeletricidade como base, está dizendo: vamos
usar a termoeletricidade de forma que não se tenha riscos durante o período em
que a hidrologia é desfavorável, que é o período entre junho e outubro. Essa
solução, como já pontuei antes, é completamente inadequada.
A campanha por redução do consumo de energia deve abranger também grandes
consumidores industriais. Estou falando de 6 setores: cimento, siderurgia,
alumínio, química, ferro-liga e papel/celulose. Em conjunto, eles respondem
pelo consumo de 30% da energia no Brasil. Não estou falando em fechar essas fábricas,
mas que um esforço desses setores na redução da sua escala de produção
aumentaria a disponibilidade de energia para a economia e para a população. É
uma questão de interesse público.
((o))eco: E a segunda alternativa?
A
segunda alternativa é a utilização do potencial do setor sucroalcooleiro como
fonte de complementação de energia. O Instituto de Eletrotécnica e Energia da
USP recentemente constatou que, a partir do bagaço da cana de açúcar, resíduo
da produção sucroalcooleira, pode-se produzir 10 mil megawatts excedentes, o
que equivale a mais de 2 vezes a energia média produzida por Belo Monte. Essa
energia pode chegar ao sistema elétrico em 3 ou 4 meses e a custo baixo.
Hoje, o bagaço é utilizado para complementar a própria necessidade de
eletricidade das usinas. Mas elas também poderiam comercializar o excedente que
é dessa ordem que eu falei, de 10 mil megawatts. Elas já comercializam 1.230
megawatts de energia elétrica excedente.
((o))eco: Por que essa energia não
está disponível?
Uma resolução da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) determina que
cabe à usina o investimento para construir as linhas de transmissão de energia
que levem esse excedente da usina até uma subestação ou uma rede de
distribuição de energia elétrica. Nosso levantamento, feito para algumas
regiões, mostra que a distância entre as usinas e a rede varia de 10 a 30 km,
percurso relativamente curto.
((o)) eco: E o que poderia ser feito
para viabilizar estas pequenas linhas?
O BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento) poderia financiar a construção
dessas linhas. Com crédito, esse excedente poderia estar disponível já na
próxima safra, em abril de 2013. Com investimento na troca de equipamentos de
cogeração ─ caldeiras de maior pressão ─ esses
10 mil megawatts potenciais da biomassa podem dobrar para 20 mil megawatts. De
novo, em nome do interesse público, o BNDES poderia ser o financiador.
Infelizmente, o BNDES está usando 22,5 bilhões de reais para financiar a
construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. Quando ficar pronta, em 2019,
ela acrescentará apenas 4.400 megawatts médios ao sistema elétrico. Veja o
absurdo, a política do governo prioriza megaobras de hidrelétricas, quando
existem soluções de energia complementar às hidros, que funcionam justamente na
época das secas. A safra da cana de açúcar ocorre no período de menos chuvas,
que vai de maio até novembro.
((o))eco: Belo Monte deveria ser
descartado, então?
Belo
Monte deveria ser descartada. O custo é enorme: 30 bilhões de reais para uma
capacidade instalada de 11.233 megawatts. Essa capacidade estará disponível
durante 3 ou 4 meses por ano, no período das chuvas. No mês de outubro, por
causa do regime hidrológico, a capacidade de geração ficará reduzida a 1mil
megawatts, ou seja, 10 % da capacidade instalada. A média ao longo do ano é de
4400 megawatts. A contribuição do rio Xingu e da Usina de Belo Monte é uma
fração do que está sendo alegado para justificar a construção da usina. Eu
afirmo, Belo Monte atende ao interesse das empreiteiras e empresas ligadas à
sua construção, e não à população e a economia brasileira.
((o))eco: E a terceira alternativa?
A terceira alternativa é a energia eólica. No nordeste, o regime de ventos é
maior justamente na época da estiagem. Os reservatórios do rio São Francisco
podem acumular água durante o período mais crítico, enquanto a energia eólica
abasteceria a região nordeste. Ouve-se a alegação de que a biomassa, a eólica,
são fontes intermitentes. Ora, a hidroeletricidade também é intermitente, pois
depende do regime hidrológico.
((o))eco: E quanto a eficiência,
qual é o percentual de perda nas linhas de transmissão?
Conforme dados oficiais, o sistema de transmissão e distribuição nacional tem
uma perda técnica (excluindo os gatos) da ordem de 15,4%. É impossível eliminar
todas as perdas, mas cortar 5 pontos percentuais é tecnologicamente viável e
traz grandes benefícios econômicos. Basta investir na manutenção do sistema: isolar
melhor os fios de transmissão e trocar transformadores que já esgotaram sua
vida útil. O número crescente de apagões é uma evidência de má manutenção. Por
exemplo, parafusos velhos levam à queda de torres de transmissão.
Dessa forma, a perda poderia ser reduzida para cerca de 10% e acrescentariam ao
sistema elétrico o equivalente a uma usina hidrelétrica de 6.100 megawatts ─ 150% mais
da média de Belo Monte ─ de acordo com cálculo recente que fiz com
estudantes da Pós-Graduação em Energia do IEE. Isso poderia ser alcançado a um terço do custo de produzir um
novo megawatt.
A Aneel é leniente em relação às perdas. É fundamental que ela defina, em nome
do interesse público, metas de redução de perdas técnicas nas empresas de
distribuição e concessionárias de distribuição de energia. O alcance dessas
metas deveria ser associado à redução tarifária.
((o))eco: É caro construir novas
linhas de transmissão?
Sim, principalmente para levar energia distante dos centros de consumo, como é
o caso dos projetos de hidrelétricas que estão sendo construídas na Amazônia.
((o))eco: E a energia nuclear? O
Brasil deve pensar em investir nesta alternativa de energia?
A energia nuclear é uma fonte cara, desnecessária e com um risco de ocorrência
de acidentes severos. Além das usinas de Angra 1 e 2, estamos construindo Angra
3. Todas elas numa região que é imprópria para a implantação de usinas
nucleares. Angra dos Reis é uma região suscetível a grandes chuvas no verão.
Não é impensável a possibilidade que uma chuva mais severa derrube as linhas
que transmitem energia elétrica do sistema até as usinas.
O resultado da interrupção de fornecimento de energia elétrica pode fazer as
bombas de refrigeração de água dos reatores pararem, provocando o
superaquecimento e a explosão do reator, que foi o que aconteceu, em fevereiro
de 2011, nos 4 reatores de Fukushima, no Japão. Com um agravante: a única via
de escoamento da população é a Rio-Santos, absolutamente incapaz de evacuar
toda a população local. A empresa Eletronuclear considera, hoje, uma população
da ordem de 200 mil habitantes. Essa população dobra na época das férias, que
coincide com a época das chuvas.